sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Liberdade de Expressão?



Em respeito aos leitores não-juristas do Blog, procurarei tratar o assunto de forma simples e sem “jurisdiquês”. No entanto, não deixarei de mencionar a doutrina e a jurisprudência pátrias mais autorizadas sobre o assunto. Deixo claro que me inspirei e utilizei vários trechos do valiosíssimo artigo de Daniel Sarmento: “A liberdade de Expressão e o problema do Hate Speech”. Não tenho a pretensão de esgotar o tema, apenas deixarei pontos para reflexão.

Na época da ditadura era muito fácil falar em liberdade de expressão, pois os atos de censura eram, inegavelmente, merecedores de reprovação. No cenário democrático, questões complexas vêm à tona, envolvendo a imposição de limites a este direito fundamental, necessários à proteção de outros direitos igualmente importantes, como a honra, a privacidade, a igualdade. Os juízes têm buscado fórmulas de equilíbrio entre princípios constitucionais colidentes, utilizando comumente a técnica da Ponderação de Interesses.

Importante salientar que, por mais valioso que seja, nenhum direito fundamental é absoluto. Até mesmo o direito à vida é relativizado em nosso ordenamento em vários momentos. Podemos visualizar claramente tal fato através do “aborto sentimental”, nos casos de estupro, ou mesmo para salvar a vida da gestante. Há ainda a pena de morte no caso de guerra declarada (art. 5º XLVII da CRFB/88). São situações especialíssimas, obviamente.

Recentemente, esteve sob os holofotes da mídia de todo o mundo o tema dos limites à liberdade de expressão. Quem não recorda da publicação de Charges do profeta Maomé em um jornal Dinamarquês? Alguns sustentaram que as caricaturas, além de representarem ofensa gratuita à religião Islâmica – que, como se sabe, não permite representações pictóricas de seu Profeta – também incitaram ao preconceito contra os árabes, ao caracterizá-los de forma estereotipada, como terroristas. Outros entenderam que tratava-se do exercício legítimo da liberdade de expressão sobre questão de máximo interesse público: o recrudescimento de conflitos em razão do fundamentalismo religioso.



A questão que vem à tona é: as manifestações de ódio, desprezo ou intolerância contra determinados grupos, motivadas por preconceitos ligados à etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental e orientação sexual devem ser protegidas?

O assunto tem provocado debates apaixonados pelo mundo todo. Cortes constitucionais e supremas cortes de diversos países já se manifestaram sobre o tema, bem como instâncias internacionais de direitos humanos.

De um lado há os que afirmam que a liberdade de expressão não deve proteger apenas a difusão de idéias com as quais simpatizamos, mas também aquelas que desprezamos e odiamos, como o racismo. Para estes, o remédio contra as más idéias deve ser a divulgação de boas idéias e a promoção do debate, não a censura.

Do outro lado estão os que sustentam que as manifestações de intolerância não devem ser admitidas, porque violam princípios fundamentais da convivência social, como os da igualdade e da dignidade humana, e atingem direitos fundamentais das vítimas.

Confesso que me filio a este último pensamento, assim como o STF, que, em importante julgado, aplaudido de forma praticamente unânime no meio acadêmico e na sociedade civil, entendeu que a liberdade de expressão não protege manifestações de cunho anti-semita, que podem ser objeto de persecução penal pela prática do crime de racismo.

Ao mesmo tempo, entendo que deve haver muita cautela para limitar a liberdade de expressão em razão do conteúdo das idéias manifestadas. Devemos evitar a todo custo que este direito torne-se refém das doutrinas morais majoritárias e das concepções sobre o “politicamente correto”, vigentes em cada momento histórico. Todavia, não podemos ignorar a força silenciadora que o discurso opressivo dos intolerantes pode exercer sobre seus alvos.

Para visualizarmos melhor o que ocorre na prática, segue trechos a tão aplaudida decisão do STF:

Habeas-Corpus. Publicação de livros: anti-semitismo. Racismo. Crime imprescritível. Liberdade de expressão. Limites.  Raça e racismo. (...) A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. (...) A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.  (...) No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada. (HC 82424, Relator(a):  Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524)

Aguardo os comentários de vocês.

4 comentários:

  1. Defendo a LIVRE expressao de forma quase absoluta, nao aceito MEIA-liberdade de expressao.
    Palavras devem ser enfrentadas c outras palavras, jamais judicializadas.

    As únicas restrições à LIBERDADE de manifestação deveriam ser a (1) incitação à violência ou (2) palavras q gerem riscos à outros (como falso alarme). O caso acima, julgado pelo Supremo Tribunal, retrata uma ideologia violenta e por isso a restriçao judicial à ela foi devida.

    Mas e noutros casos, vamos começar a policiar o que for dito? Como escrevi noutro post deste blog, levanto as seguintes dúvidas:

    Manifestação em favor dos gays pode, mas contra os gays ñ pode? Orgulho negro pode, mas orgulho branco é nazismo? Orgulho nordestino pode, mas orgulho paulista/carioca é bairrismo? Camisas "aceite jesus" sao aceitáveis, mas camisas "negue jesus" sao condenáveis? Orgulho de ser mulher ñ é sexismo, mas orgulho de ser homem é machismo?

    Manifestação a favor do MST pode, mas contra ñ pode? A favor do aborto pode, mas contra ñ pode? A favor das polícias pode, mas contra elas ñ pode? A favor de um Presidente pode, mas contra ñ pode? A favor da liberaçao do uso de armas pode, mas a favor da proibiçao das armas ñ pode? A favor da proibiçao da maconha pode,mas pela legalizaçao do bagulho ñ pode?

    Ora, ou podemos tudo por sermos LIVRES ou ñ podemos manifestar nossas ideias de forma verdadeiramente livre.

    Por fim, a celeuma criada pelo cartoon do Profeta só mostra o radicalismo de parte do Islã e mostra como não se aceita o LIVRE discurso em parte do mundo. Recordo-me orgulhosamente do desenho South Park, q mostrou Jesus com fuzis e granadas, matando pessoas no Iraque e como ex-amante de uma coroa piranhona na cidade. Orgulho porque no Ocidente vimos uma caricatura de Cristo e ninguém tacou fogo ou matou ninguém por isso.

    Bruno Carvalho

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  2. Bruno,

    Ninguém falou em "meia" liberdade de expressão. O autor (Sarmento), a jurisprudência brasileira e até mesmo as Cortes Interamericanas de Direitos Humanos (havendo inclusive Tratados versando sobre punições ao Hate Speech) apenas entendem que este direito fundamental, assim como nenhum outro, é absoluto.

    Quando falamos dos discursos de ódio, devemos pensar em grupos Neo-nazistas, na Ku Klux Klan, dentre outras tentativas odiosas de calar as minorias. Quando você defende a autonomia de alguém proferir esse tipo de discurso, inferioriza e humilha minorias já tão estigmatizadas, não contribuindo em nada para a democracia, muito pelo contrário. A paz social exige estas restrições, por isso existem os crimes de racismo, calúnia, difamação ou injúria. Ninguém pode defender, por exemplo, que atirar uma cruz pegando fogo no quintal de alguém seja uma manifestação de "liberdade-de-expressão".

    Não acho que a sua comparação da Charge de Maomé com o episódio de South Park que caracterizou Jesus tenha sido feliz, pois não podemos olhar o Oriente com um olhar Ocidental.

    Quem defende a liberdade de expressão a qualquer custo, acaba por recair num discurso individualista, sem se precocupar com os direitos sociais e a dignidade da pessoa humana. A jurisprudência norte-americana tem muitos julgados nesse sentido, e muitas vezes, defendendo veementemente a liberdade, cala sobre a discriminação. Lamentável.

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  3. Os Neo-nazistas e a Ku Klux Klan entram numa das excessões q particularmente aceito, a da incitação À violência, por isso podem e devem restringidos.

    Eu NÃO defendi o discurso destes em nenhum momento, defendi o DIREITO de se falar as OUTRAS coisas q citei (por ex.: de se "negar" cristo, orgulho de ser branco, paulista, heterossexual, alemão, rico etc, ja q os orgulhos opostos sao legitimamente aceitos).
    Aceitar apenas as manifestaçoes de, por ex., orgulho negro, pobre, latino, nordestino é sim uma MEIA-liberdade de manifestaçao, pois só À metade é dado o direito de manifestar seus orgulhos. Sao minorias? Sao, mas por isso só eles podem ter orgulho e agenda política? Claro q ñ.

    Tampouco me agrada a ideia de se judicializar qualquer assunto. A democracia é o sistema dos conflitos, pq sao todos livres p dizer oq pensam. Regimes totalitários é q se justificam tomando sua liberdade como trazedores da "paz social". Sim, na democracia um boçal vai dizer q todo judeu é ganancioso ou islamita é terrorista. Mas o judeu e o islamita terão o direito de igualmente lhe responder. O que ñ aceito é a censura prévia a discursos, seja criando embaraços legais, seja pelo politicamente correto.

    Se vc tem direito de elogiar Cristo tenho o mesmíssimo direito de criticá-lo, sem por isso ser difinido como um preconceituoso. Se tens o direito de elogiar o Nordeste tenho o mesmíssimo direito de criticá-lo.

    Muita gente boa defende a liberdade de expressao para alguns valores, mas rechaça a chance de se dizer outros. Ora, meia-liberdade só existe em Cuba, Iêmen, Coreia do Norte, (velha) Tunísia, Venezuela (semana passada o gov proibiu uma novela q tinha um cao chamado Huguito),e outros lugares com a "democracia" de um só partido, uma só religiao, uma só visão política, uma só sexualidade.

    Abç, Bruno Carvalho

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